Revista  Globo Rural – Preservação – Em Perfeita Harmonia

Revista Globo Rural – Preservação – Em Perfeita Harmonia

Produtor paulista semeou um projeto para recuperar solos pobres. Colheu respeito e modelo de sustentabilidade.

Texto: Janice Kiss
Fotos: Marcio Minillo

O produtor Guaraci Diniz Júnior tem um jeito muito simples de explicar o passado do Sítio Duas Cachoeiras. No ponto mais alto da propriedade localizada em Amparo, na Serra da Mantiqueira e a 130 quilômetros de São Paulo, ele aponta de um lado e diz: “Aqui só tinha cana”; vira do outro e informa: “Aqui só havia café”. Essas foram as duas únicas plantações que ele encontrou quando se recolheu no sítio da família para escrever uma tese de pós-graduação em educação física. O tema tratava do restabelecimento de deficientes físicos por meio da hidroterapia. Mas nos momentos de pausa, Guaraci se punha a olhar aqueles 30 hectares e aos poucos se deu conta que deveria tratar de outro tipo de reabilitação: a da terra empobrecida por anos de uso calcado em apenas dois cultivos e pela pastagem de gado. Bem que ele já havia percebido amostras do desgaste e da falta de nutrientes através de um canteiro, no qual brotavam hortaliças mirradas e sem viço.

O material limpo e tingido por Guaraci Diniz é entregue à esposa Cecília, que tece os fios e faz deles muitos tapetes

Disposto da vida e com muitas idéias na cabeça, lá se foi o jovem de 22 anos na época e sem vínculos rurais instalar os plantios de arroz e feijão. Logo Guaraci percebeu que a agricultura era um assunto complexo quando o dono da loja de sementes perguntou qual era a face do terreno para que comprasse a variedade mais adequada ao clima local. “Fiquei envergonhado. Tanto estudo para não saber plantar nada”, confessa. Pelo menos havia a certeza de que deveria escolher entre a carreira acadêmica ou recuperar a fertilidade do solo e a biodiversidade do lugar. Optou pela segunda. Como precisava aprender tudo e não queria repetir o mesmo modelo das monoculturas da região, ele procurou os ensinamentos dos antigos agricultores que têm por costume não perder de vista as advertências dadas pela terra. Se aparecem arnica e sapé, significa solo ácido em demasia. Guanxuma indica compactação e suas raízes fortes e profundas ajudam na sua regeneração. “É a busca pela auto-correção”, explica. Mas a ajuda natural das plantas não era suficiente e foi necessário usar calcário para corrigir tanta acidez.

A lã, ainda suja, usada no combate às formigas
A lã, ainda suja, usada no combate às formigas

Sem saber, ele punha em prática os princípios da agroecologia – ciência que preza o restabelecimento ou a conservação da terra protegida por uma vegetação diversificada -, onde a pressa não é bem-vinda. Por longos 20 anos, o agricultor e sua esposa Cecília fizeram da propriedade um projeto único. Não havia dinheiro suficiente para dar início a diversos plantios e recuperar uma paisagem composta por pastos e com solos sujeitos à erosão. O jeito foi construir aos poucos, “como se fosse uma grande casa”, exemplifica Cecília. O primeiro passo foi não mais mexer na mata e deixar que o tempo desse conta do reaparecimento das espécies. Enquanto isso formaram a plantação de arroz, soja, feijão, girassol, mandioca e abóbora. Os grãos usados são os crioulos, variedades que não passaram por melhoramento científico, e quando necessário trocados em feiras de produtores. Plantaram frutíferas, cultivaram hortaliças e na primeira colheita veio o excedente. O que não era estocado necessitava de reaproveitamento imediato. Por isso, frutas e legumes são desidratados num secador solar construído por Guaraci. Da semente de girassol se faz o óleo por intermédio de um moedor caseiro; do milho, a farinha; da soja, o missô – uma pasta rica em proteína e muito usada na alimentação japonesa -; e das cinco toneladas de manga da última safra, muita polpa, doces e pedaços secos.

PROVEITO

Guaraci só semeia grãos crioulos, como os do arroz caiapó e aimoré

Dessa maneira eles desencadearam um processo de reutilizar tudo. A água que abastece as casas sai por gravidade das duas nascentes. Ela é captada por caixas de argila que desembocam em dois reservatórios centrais e passa a ser aquecida por placas de energia solar capazes de captar a luz mesmo em dias de inverno. Esquentam a água a 40ºC ou a 80ºC, durante o verão. As 50 ovelhas fornecem a lã que será transformada em tapetes fabricados no tear manual. Guaraci se incumbe da tosquia e da lavagem do material no rio. Depois de seca, Cecília leva a lã para a sala de tecelagem instalada numa antiga casa de colonos. Lá, carda os fios, passa-os pela roca a fim de prepará-los para o tear. No trançado deles reconstitui um ofício milenar com peças que serão tingidas com o pó de urucum, da cúrcuma e de ervas medicinais.

Ao longo dos anos, o Duas Cachoeiras despertou o interesse dos professores das escolas da região. Eles queriam mostrar aos seus alunos como uma propriedade pode se manter auto-sustentável, igual aos tempos antigos. De uma maneira informal, Guaraci e Cecília recebiam as crianças e explicavam o dia-a-dia no sítio. E assim eles começaram a repassar o saber tradicional de uma agricultura que preza a integração e a pouca interferência em seu ambiente. Explicaram que os cultivos de feijão, mamona, abóbora e crotalária são consorciados, por exemplo, para que sempre haja a abertura de flores. Por meio delas, as abelhas dos 14 apiários garantem seu alimento para fabricar 700 quilos de mel por ano. A cera produzida pelos insetos entram como ingrediente no tingimento das lãs.

SAFRA DUPLA

O sítio tem duas safras: uma agrícola, outra educacional

Os fios têm também um uso bem agrícola. Ainda sujos são enrolados nos pés de poncã, pois o óleo nele presente serve para embaraçar as formigas cortadeiras. As sobras do girassol, depois de debulhado, se transformam em tortas servidas às ovelhas que também se alimentam de braquiária, batatas e plantas nativas. A vassoura plantada junto com arroz muda o foco de interesse dos passarinhos que comem suas sementes enquanto o grão amadurece. No fim do ciclo, ela se transforma em utensílio de limpeza. É assim que o público infantil, em torno de 2.600 crianças, por ano, aprende a lição de um cultivo ecológico e resgata uma agricultura provavelmente utilizada por seus avós.

Acontece que esse projeto ambiental não despertou apenas o interesse das escolas de ensino básico. O Laboratório de Engenharia Ecológica e Informática Aplicada da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, SP, se interessou em fazer uma análise da propriedade que atingiu 60% de sustentabilidade e 0,4 de impacto ambiental dentro da escala de um a dez. “E não houve investimento financeiro pesado”, reforça Guaraci Diniz. Enquanto os pesquisadores seguem com os estudos, o agricultor vai em frente com seus planos. A antiga casa dos colonos se transformou em alojamento, o estúdio foi erguido com os materiais de uma granja desmontada, a cocheira virou a casa do mel e das ervas medicinais, e o refeitório tomou o lugar do galpão do trator. Por conta da demanda, o Sítio Duas Cachoeiras precisou se dividir em duas safras. A primeira é agrícola e ocupa os meses de outubro a março. A segunda é educacional. Durante essa fase, Guaraci e Cecília se preparam para receber os alunos de abril a outubro e ensinar-lhes aquilo que aprenderam no exercício da profissão. A de que agricultura e biodiversidade podem viver em perfeita harmonia.

 

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